Game Over para a Infância? Entendendo e enfrentando os perigos digitais
- Adão Meira
- 13 de ago.
- 7 min de leitura

Vivemos em uma era hiperconectada, onde a tecnologia deixou de ser apenas ferramenta para se tornar cenário e, muitas vezes, refúgio emocional. Os jogos online, que antes eram simples entretenimento, hoje ocupam lugar central na vida de milhões de crianças e adolescentes. Para muitos, não são apenas passatempo: representam o único espaço onde sentem que podem se expressar, conquistar algo ou serem reconhecidos.
O Guia Crianças, Adolescentes e Telas do Governo Federal (2025) alerta que o uso excessivo de jogos digitais está associado a atrasos no desenvolvimento cognitivo, alterações no sono, sedentarismo, ansiedade, depressão e dificuldades de autorregulação emocional. A Kaspersky, em seu relatório sobre riscos em jogos online, aponta ameaças como cyberbullying, contato com predadores, golpes, exposição a conteúdo impróprio e malware disfarçado de conteúdo para jogos. A Internet Matters reforça que esses ambientes digitais são também redes sociais, com seus próprios códigos, pressões e riscos. Pesquisas da USP acrescentam que o Transtorno de Jogo pela Internet, já reconhecido pelo CID-11 e pelo DSM-5, é um problema crescente de saúde mental.
Mas antes de demonizar o jogo, precisamos buscar compreender, o que leva um jovem a buscar nele o seu porto seguro?
Razões profundas para o refúgio digital
Os motivos ultrapassam, e muito, o simples interesse pela tecnologia. De acordo com a pesquisa de Cruvinel & Borucho (2009), que analisou a relação entre depressão infantil e ambiente familiar, a ausência de supervisão e de envolvimento efetivo dos pais surge como um fator determinante para o aparecimento de sintomas depressivos. Nesse contexto, entre as causas mais frequentes que levam crianças e adolescentes a buscar refúgio no mundo virtual, destacam-se:
Ausência de vínculos afetivos sólidos: Crianças e adolescentes que não se sentem vistos, ouvidos ou valorizados no ambiente familiar buscam acolhimento e pertencimento em outros lugares, muitas vezes virtuais.
Baixa autoestima: A falta de reconhecimento ou o excesso de críticas leva o jovem a buscar no universo digital um palco para conquistas rápidas e validação constante.
Isolamento social: Bullying, timidez e dificuldades de relacionamento tornam os espaços online mais “seguros” e controláveis (Internet Matters, 2024).
Falta de propósito: Jovens que não percebem sentido na escola, nas relações ou na própria vida encontram, nos jogos, missões e recompensas que simulam propósito.
Adultos ausentes: Como observa Vanessa Cavalcante (2024), muitos pais estão presos ao celular, ao trabalho e às suas rotinas, terceirizando o papel de educar para a escola. Isso deixa lacunas que o jovem tenta preencher com a tela.
A crise silenciosa do propósito e o suicídio infantil
Reportagens recentes exibidas no Fantástico (G1, 2025) revelam um cenário alarmante: crianças e adolescentes têm chegado ao ponto extremo de tirar a própria vida por acreditarem que não existe motivo para continuar vivendo. Em diversos casos, constatou-se a ligação com desafios online de alto risco e com comunidades virtuais que estimulam a autolesão e o suicídio.
Embora o suicídio infantil ainda seja considerado um fenômeno raro, seu crescimento nos últimos anos é motivo de profunda preocupação. Dados da Sociedade Brasileira de Pediatria indicam um aumento significativo nas tentativas e nos casos consumados entre crianças de 10 a 14 anos, impulsionados por fatores como depressão, isolamento social, cyberbullying e exposição a conteúdos nocivos. A Revista FT (2024) reforça que o abandono emocional na infância deixa cicatrizes profundas, aumentando a vulnerabilidade psicológica e a suscetibilidade a comportamentos autodestrutivos ao longo da vida.
As consequências graves desse cenário incluem:
Dependência digital: O jovem perde interesse por atividades fora da tela.
Comprometimento escolar: Queda no rendimento, evasão e desmotivação para estudar.
Problemas de saúde física: Sedentarismo, má postura, obesidade, distúrbios do sono e dores musculares.
Riscos de exploração sexual e financeira: Contato com predadores e golpistas em jogos e chats.
Danos emocionais profundos: Ansiedade, irritabilidade, baixa tolerância à frustração e, em casos extremos, ideação suicida.
Comunidades virtuais: Discord, Roblox e além
Plataformas como Discord e jogos como Roblox vão muito além do simples entretenimento: tornaram-se verdadeiros ecossistemas sociais, onde crianças e adolescentes passam horas interagindo, criando e se conectando.
Discord: Trata-se de um espaço de comunicação por voz, vídeo e texto, organizado em “servidores” temáticos. Embora possa favorecer amizades e comunidades de interesse, a Kaspersky alerta que também expõe jovens a riscos como assédio, predadores virtuais e grupos com conteúdo nocivo.
Roblox: É muito positivo para uso educacional, pois oferece um ambiente que estimula a criatividade por meio da criação e exploração de mundos virtuais. No entanto, como destaca o Guia Federal sobre uso seguro da internet, essa liberdade também abre portas para interações perigosas e para o acesso a conteúdos sem a devida moderação.
O apelo dessas plataformas é evidente: sempre há alguém disponível para conversar ou jogar. Mas, como reforça a Sociedade Brasileira de Pediatria, o contato virtual jamais substitui a presença física e o afeto genuíno da família. O senso de pertencimento encontrado no mundo online é frágil e, muitas vezes, ilusório.
Pais distraídos, lares silenciosos
Um dos sinais mais preocupantes do cenário atual é que muitos pais, mesmo fisicamente presentes em casa, estão emocionalmente distantes, absorvidos pelo celular, pelas redes sociais ou pelas demandas incessantes do trabalho. Nessa ausência silenciosa, o papel de orientar, escutar e transmitir valores acaba sendo delegado à escola que, por mais competente e dedicada que seja, jamais poderá substituir a função afetiva, moral e espiritual da família.
O Guia Crianças, Adolescentes e Telas é categórico: não basta impor regras ou limitar o uso de dispositivos; é essencial que os pais acompanhem de perto, participem e dialoguem sobre a vida digital dos filhos. É evidente que a ausência emocional não se resolve com “controle remoto”, pois as feridas da ausência emocional só podem ser tratadas com presença real, interesse genuíno e afeto constante.
Resgate afetivo, propósito e espiritualidade
Superar essa realidade exige muito mais do que proibir ou limitar telas. É necessário reconstrução dos vínculos e oferecer sentido real para a vida. Isso envolve:
Reconstruir o vínculo familiar: Criar momentos de convivência intencional, como refeições sem celulares, passeios, brincadeiras e conversas abertas.
Dar propósito concreto: Envolver o jovem em causas, projetos, esportes, artes e experiências coletivas. O escotismo, com sua pedagogia ativa e comunitária, é uma ferramenta poderosa.
Educar para o uso consciente da tecnologia: Ensinar sobre riscos e manipulações online, como defendem Internet Matters e Kaspersky.
Dar exemplo: Pais e líderes, todos devemos demonstrar equilíbrio e autocontrole no uso de tecnologia.
Cuidar da dimensão espiritual: A espiritualidade é um fator protetor comprovado para a saúde mental. Mais do que nunca, ensinar o jovem a cultivar sua relação com Deus, a buscar sentido na fé, e a encontrar apoio em valores eternos dá direção, conforto e resiliência diante dos desafios.
Apoio psicológico: Em casos de sinais persistentes de sofrimento, como isolamento, irritabilidade e discurso de desesperança, buscar ajuda profissional imediatamente.
O papel do escotismo e da fé
No cenário atual, marcado pela imersão excessiva no mundo digital e pelo aumento de casos de depressão infantil, o escotismo se faz especialmente relevante. Como ensinou Baden-Powell em A Educação pelo Amor Substituindo a Educação pelo Temor, é preciso substituir a obediência baseada no medo por uma formação que desperte no jovem o desejo de aprender, servir e crescer em caráter. No movimento escoteiro, o aprendizado acontece pelo exemplo, pelo desafio e pelo serviço. Nas atividades ao ar livre, nos acampamentos e nos projetos comunitários, a juventude vivencia, de forma prática, a cooperação, a liderança, a responsabilidade e a alegria de servir, desenvolvendo habilidades que fortalecem o corpo, a mente e o espírito.
Baden-Powell defendia que a verdadeira educação não é apenas transmitir conhecimentos, mas inspirar a autoeducação voluntária, baseada na boa vontade, no espírito de equipe e no serviço ao próximo. Essa abordagem constrói caráter, abole barreiras sociais e cultiva uma mentalidade de paz em lugar da desconfiança e da competição hostil.
Quando essa vivência se une à espiritualidade ao entendimento de que foi criado com um propósito, amado por Deus e chamado a viver com integridade e solidariedade, forma-se uma base sólida contra as pressões e armadilhas do mundo digital. A fé oferece perspectiva, esperança e um sentido profundo que nenhuma conquista virtual pode oferecer, preparando o jovem para enfrentar os desafios da era conectada com equilíbrio, discernimento e propósito.
Os perigos digitais que ameaçam crianças e adolescentes são reais, sérios e profundamente concretos. Não se tratam apenas de “ameaças virtuais”: seus efeitos se manifestam na saúde mental, no comportamento e, em casos extremos, no próprio destino de vidas. A tecnologia, por si só, não é o vilão, o risco surge quando ela se torna a única fonte de sentido, pertencimento e conexão.
O suicídio infantil, embora ainda raro, é um sinal de alerta máximo. Ele revela que estamos falhando em oferecer aos nossos filhos motivos para viver, esperança para o futuro e vínculos humanos capazes de sustentá-los diante das adversidades.
A família é o núcleo insubstituível dessa proteção. É nela que nascem os primeiros vínculos, se consolidam os valores e se formam as referências espirituais. Pais presentes, amorosos e atentos moldam jovens mais seguros, preparados e resilientes para enfrentar o mundo.
O escotismo, com seu método baseado no exemplo, no serviço e na vida ao ar livre, oferece uma alternativa saudável e transformadora. Ele reconecta o jovem à realidade concreta, à comunidade e à natureza, despertando nele a cooperação, a liderança e o senso de propósito. Quando somado à espiritualidade, esse processo se completa: o jovem descobre que cada vida tem valor eterno, um propósito único e um Criador que o ama e acompanha cada passo.
Se quisermos salvar nossos jovens da captura emocional e espiritual que muitas vezes começa atrás de uma tela, precisamos unir forças entre família, educação, escotismo e fé. Só assim eles compreenderão que o verdadeiro “jogo” é a vida, e que vale a pena vivê-la com intensidade, integridade e propósito.
Sobre o autor
Adão de Meira é professor e chefe escoteiro, licenciado em Sociologia e Pedagogia, e tecnólogo em Design Gráfico. Possui especializações em Ensino Religioso, Neuroeducação, Engenharia Ambiental e Ciência de Dados. Atualmente está como Vice-presidente da IMPISA/WFICS, e como Diretor de Formação de Adultos.



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